Cronicando



Roma

O nosso amor a gente inventa. Literalmente, porque é tão real que é ao contrário. Você sabe, querido, que o meu amor mais sincero se revela no meu ódio igualmente sincero por ti. Um "eu te odeio" meu vale mais que qualquer "eu te amo" dito por aí. E tu sabe que as coisas só vão bem quando eu posso dizer que te odeio. Até porque tu não acreditas em amor, contigo é só paixão. Tu e esse teu espiritozinho de burguês comunista que faz limpeza de pele e depois vai ler Karl Marx. Mas eu também sei que tu me amas profundamente, pois vai me dar a honra de ser a primeira a ser fuzilada assim que tu revitalizares a URSS. Poderia eu querer declaração de amor maior?
Meus olhos e minha percepção, o profeta do meu futuro. Ainda espero pelo dia que tu prometeste que eu iria morder minha linguinha de serpente Naja. Eu estarei esperando, querido, mas sentada, que é pra não cansar minha beleza. Tu andas com problema no teu baralho de tarô, só pra avisar. Ah, mais uma coisa: eu quero os meus quinze reais, já te falei. É o meu maço de cigarros e a minha garrafa de cerveja. Por favor, deixe na mesa de cabeceira, antes de sair.
Não discuto mais teus gostos. Por mim o problema é teu se tu preferes dançarinas de cabaré e uma velha louca que já tem 70 anos, mas continua se arrastando pelo palco em um maiô ridículo. Que seja, pode ser inveja minha, afinal eu não tenho o dinheiro dela, sequer cacife pra ter namorados como os dela. Mas qaundo eu tiver dinheiro eu os terei também, você verá. Só que comigo não é paixão, baby, eu quero amor. Tu mesmo disseste, o amor foi feito pra gente como eu, boba e burra, disposta a aguentar mais uma desilusão, ou quantas outras forem necessárias.
O que mais me enraivece é achar que eu provavelmente estarei ligada a você enquanto durar a minha vida e os maços de cigarros não acabarem. Porque por ti eu morro um pouco a cada dia, você me matando com essa cara de menino mal-humorado que não ganhou sobremesa. Porque os teus cortes vêm sangrar em mim e a tua falta de memória me cega. Eu te odeio! Do fundo do meu fígado! Mas eu já perdi meu medo de ti, até porque tu também já não tem mais tanto medo de mim. Acho que a minha TPM finalmente foi controlada e tu já podes ligar pro meu ginecologista agradecendo o calmante que ele me receitou. Com certeza o médico salvou a tua vida; você provavelmente não sobreviveria a outro ciclo mestrual.
Fazer o quê se hoje tu andas mais interessado em entomologia que em mim? Que muriçocas te mordam, eu te odeio mesmo... E agora, tchau, que o meu voo para Roma parte em meia hora. Seja feliz, ok? Não sinta minha falta, eu não vou sentir a tua. Sabe como é, sempre ao contrário. Roma, baby, Roma...


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Sem o moço blues
Quando o moço a deixou, ela percebeu que parafrasear Caio Fernando Abreu podia se tornar uma tarefa muito interessante; que para curar dores de amor, só mesmo feminólogos cafeinados com blogs cor-de-rosa. Ela montou um dossiê sobre romance mais completo que os tais que rolam à torto e à direito lá pela sede do governo federal. Virou expert em amor, exceto pelo fato de ser uma verdadeira anta no quesito. O que nem é um problema tão grande, se nós formos analisar, pois só quem não entende p*rr* nenhuma do assunto pode falar coerentemente sobre. Ou não. Viu só?
Ficou viciada em Blues. Não só o "Sem Ana blues" - constituição federal da sua nova república interior -, mas também o "da piedade". E toda noite pedia piedade pra essa gente careta e covarde que não sabe amar e fica esperando alguém que caiba no seu sonho. "Piedade, Senhor!" Lhes dê grandeza e um pouco de coragem." Pela primeira vez o celular já nem importava mais. Podia muito bem passar dois, três dias perdido embaixo da cama. Não tinha mais mensagens nem ligações às nove da noite, então pra que outra coisa o aparelho serviria?


Quando o moço a deixou, ela percebeu que todo mundo presume que uma criatura de 17 anos já seja um adulto, consiga resolver sozinha seus próprios problemas e já saiba o quer da vida. Ninguém liga se o seu coraçãozinho foi destroçado (com o perdão do exagero) e você resolveu matar aula, não estudar, passar a tarde no banheiro da escola (não que ela tenha feito exatamente isso, mas deixa pra lá...). Desenterrou os sapatos de salto, os brincos de argola, mudou o penteado. Redescobriu o prazer de paquerar sem culpa, de receber elogios e poder retribuir de modo bem "cordial", digamos assim.

Ela se sentiu mais mulher depois do primeiro "pé-na-bunda". Suas teorias foram comprovadas e, munida de extensos exemplos e relatos, já tinha uma vasta gama de situações com as quais ter cautela. E outra coisa: descobriu que só se odeia de verdade quem realmente se ama. O problema é que o ódio nunca dura muito tempo, e aí é preciso reconhecer que o sofrimento é latente e que não tem reza que convença a criatura a continuar odiando o "dito cujo". Teve de concordar com o cronista: só quando se sofre por amor se tem inspiração pra escrever algo que preste. A inspiração era mais contagiante que escola de samba na Marquês de Sapucaí, e ela já se sentia a própria musa de Machado de Assis. Ficava até mesmo ensaiando os tais olhos de ressaca na frente do espelho.

Quando o moço a deixou, ela provou na prática as teorias de Einsten. Duas semanas são duas décadas pra quem tenta desesperadamente se desapaixonar. O tempo nunca fora tão relativo. E o universo, então? Parece que toda uma galáxia tinha resolvido se mudar e instalar-se bem ali, entre os dois, antes mais unidos que um átomo de U-235. Descobriu que histórias iguais às dela existiam aos montes e que as coisa que o moço tinha dito eram mais clichê que brigadeiro em festa de criança. Aqui, leitor, uma pontada de frustração. Quer dizer que além de aguentar a dor do término, ainda tinha de aguentar a falta de originalidade do rompimento? Isso já era demais.

Quis se apaixonar de novo. Não deu certo. O moço se recusava a ir embora. Ficou com raiva, mandou às favas o orgulho, queria mesmo era bater na porta do safado e implorar pra que ele voltasse. Chegou até a subir no ônibus, mas aí percebeu que não lembrava do endereço. Tinha-o memorizado no celular, mas acabara por apagá-lo junto com as mensagens melosas do moço. Fora salva do vexame por um triz. Se bem que "vexame" é verbete que não consta no dicionário de idiotas apaixonados.

Quando o moço a deixou, ela percebeu que Deus é péssimo cartomante, principalmente porque Ele não traz a pessoa amada em três dias. A esta altura as coisas do moço iam se acumulando pelo meio da casa. As coisas que ela - numa volúpia de raiva - tinha mandado para "o diabo que o carregue". Mas como a função do "coisa ruim" é justamente atormentar a vida dos outros, o "tinhoso" se recusou a carregar os ursinhos, florzinhas e cartinhas que ela ainda guardava. Tentou então queimar tudo. Mas quando a primeira gota de álcool caiu no papel manchando a tinta da caneta, debulhou-se em lágrimas. Ê menina que não aprende. Na verdade, quem aprende?

Resolveu esperar o tempo passar, quem sabe esse fosse mesmo o melhor remédio,como todos diziam. Parou para analisar racionalmente os fatos, elencar todas as icógnitas. Icógnita era ela própria, mas isso não vinha ao caso. Deixou-se entregar à essa dorzinha chata que é amor. Parou de lutar, cansou, que com essas coisas não se briga. Reconheceu que amava, amava, amava! O jeito era esperar que o amor fosse embora de mansinho, assim como veio. E se demorasse, paciência. Amar é assim mesmo, machuca,deixa todo mundo querendo canja de galinha, colo de mãe e chocolate quente. Entretanto, convenhamos, tem machucado melhor que este?


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De Setembro

E toda ela estava a pedir beijo, só ele não percebia. Não percebia ou estava a esperar o melhor momento para surpreendê-la?
O modo como ela sempre tinha um jeito de procurar os braços dele, deixando-se enlaçar pelos músculos fortes, apoiando a cabeça sobre o peito coberto pela camisa, sorvendo paulatinamente cada nota do perfume dele.
O menino gostava de tê-la em seus braços. O corpo delgado e delicado dela, a cintura fina, as mãos pequenas e magras. E ele gostava de confundi-la. Tinha certeza que aquela "Capitu" queria os seus braços, o seu peito. Ela toda era a própria ressaca d'um mar. Ora vinha de maré cheia ao encontro dele, ora como de maré baixa, tentava se afastar, alguras tolhida por algum sentimento de culpa. As ações dela eram um oceano, um mar de ondas ao movimento das marés.
Ela sabia que estava brincando com fogo, e o risco de sair queimada era enorme. Não, não era amor. Era paixão, pura e simples. Os lábios dela queriam os dele, mas a moça sabia que sucumbir a isso significaria, talvez, perder o seu coração e a sua identidade. Sim, porque seus atos não recairiam apenas sobre ela, mas seriam como punhaladas naqueles que ela amava. "Naquele", melhor dizendo.
Ah, mas e como ela gostava de querer o perigo... A esta altura as línguas de fogo já se confundiam com as línguas dos dois, ambos atraídos pelo sabor do "escondido", do "proibido". Os risos furtivos, os olhares sorridentes. Os corpos pedindo pelo calor do outro, ela dançando nos abraços dele, ele tirando-a para dançar.
São jovens, têm o desejo e a audácia da juventude, mas pelo menos ela tinha de colocar a cabeça em ordem. Uma paixão não poderia reduzir a cinzas tudo que o amor tinha se esforçado para construir. Setembro chegou, Setembro está indo. Leva embora, Setembro, leva para longe os delírios de uma cabeça-de-vento...